A cidade mantém-se imponente, as estradas, as ruas, os carros como a corrente sanguínea de um ser vivo, quase que consigo sentir-lhe a pulsação. Alguma vez pensaste nisso?, como se os semáforos fossem o controlo da pulsação, o batimento cardíaco que impulsiona o sangue: está vermelho tudo pára, aqueles segundos entre pulsares, aquele instante em que todo o nosso corpo pára e respira, descansa, para depois bombear, de novo num caos, o sangue de volta aos órgãos.

No ar, uma gaivota contorna um edifício; à medida que as suas asas agitam a cidade é-lhe apresentada na sua totalidade. O seu ondular é harmónico e quente enquanto atravessa o vento a muitos metros do sistema circulatório que é a urbanização e a humanidade. Ao longe nuvens negras vão se juntando. A gaivota fica alarmada e faz um voo picado até à varanda do edifício mais próximo e, de lá, olha para as recentes nuvens que se aproximam. Não é comum as gaivotas terem medo de nuvens, até é bastante improvável, nuvens negras à beira-mar são bastante comuns, mas estas eram diferentes. Sentia-lhe um cheiro seco e não conseguia compreender o que era. Pousada no corrimão da varanda continua com o olhar fixo no aglomerado negro que, entretanto, se tornou o céu que a rodeia. O mar também está calmo, não é normal, não se sente a menor brisa, a temperatura continua alta e a humidade escassa. O sangue urbano foi limpo das estradas e os postes de iluminação foram desligados, o cheiro seco volta e a gaivota volta a ficar alarmada. Ao longe, uma aglomeração de outras gaivotas juntava-se, às voltas, no topo de uma igreja, também sobressaltadas com algo que não conseguem descobrir o quê. De repente, ouve-se um trovão, apenas se ouve, das nuvens não se viu um sequer raio de luz; minutos depois outro trovão e meia-hora depois outro. Neste momento, as gaivotas voam sem destino, juntando-se a elas, numa comunicação aérea, outros bandos de aves diferentes, rouxinóis e melros - que, entretanto, despertaram com a fúria do céu -, corujas e corvos - que se afastaram da penumbra da floresta e decidiram entrar na discussão - , tordos e chapins-azuis - que abandonaram, por um momento, os ninhos construídos nas árvores mais baixas. O chilrear de tamanho arraial de aves conseguia ouvir-se a dezenas de quilómetros de distância, no entanto, nem o padre residente na igreja, que é a fonte de todo o caos sonoro, acordou. Como se, naquela noite, tivessem perdido a capacidade auditiva nenhuma pessoa acordou, mantiveram-se nas suas camas quentes, a sonhar.
Do céu, então, caiu um gato e depois outro, e outro e mais outro; caíram gatos das nuvens durante duas horas. Os gatos, de todos os tamanhos e raças, formados no negro e seco do céu, iam caindo como se de uma chuva normal se tratasse. Não tinham asas, mas é como se tivessem, umas asas invisíveis, ou simplesmente hipotéticas, que permitiam que caíssem, suavemente, no chão, nos telhados ou nas árvores. Uma vez assente em solo firme cada gato seguia o rumo normal de um gato normal, como se nada de anormal se tivesse passado, e que, no entanto, realmente se passou.

Nem as aves notaram; passadas as duas horas e ultrapassada a chuva felina, as nuvens afastaram-se e o odor seco abandonou foi substituído por um odor a sal do mar, os pássaros afastaram-se - alguns corvos levando na boca uma presa fácil da comunhão - e o céu retornou ao seu estado quotidiano. Durante essas duas horas, o planeta não deixou de girar sobre si próprio nem sobre o Sol. Quando toda a fauna acordou, no dia seguinte, foi como se nada se tivesse passado, nada tinha mudado, excepto, claro, o equivalente em número a duas horas de uma chuva de felinos.
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