Ele olha-me nos olhos, sinto-me sempre desconfortável quando me olham nos olhos. Olhos penetrantes, quase secos, pára!, penso, só penso, nunca reajo, fico no meu canto figurado e, geralmente, sento-me naquele banco mental em que vejo simplesmente as coisas a passar. Ouço música que mais ninguém ouve, é esse o sinal quando entro nesse canto em especial, uma música, provavelmente dos anos trinta ou quarenta, não sei distinguir muito bem isso; ouço um gramofone, ou uma grafonola o que lhe quiserem chamar, que toca uma música só instrumental que me faz lembrar os filmes clássicos de Hollywood, Casablanca ou My Fair Lady, The Sound of Music ou Lyra. Nunca encontrei essa grafonola, ouço o seu som, mas por mais que vasculhe os recantos desse quarto branco, e acreditem que já o vasculhei vezes sem conta, ela mantém-se escondida nos recônditos do meu ser; já cheguei a pensar que está noutra sala, num quarto de paredes ocas onde nunca estive e de onde a música provem, mas, com receio da minha própria curiosidade, afasto esse pensamento; imagino-me a partir as paredes do quarto à procura desse saxofone e desses trompetes e violinos e pianos que ouço. Partir as paredes de um quarto figurativo na minha própria mente soa-me imenso ao limite da estabilidade e da loucura; a partir do momento em que as minhas mãos chocassem com o cartão da parede e esta se estilhaçasse como vidro partido no chão saberia que não passo de uma alma inerte e inútil que a cada trago de vinho se depara cada vez mais com a sua inutilidade, quão deprimente seria.Bebo um trago de vinho e do bolso do casaco tiro um cigarro que acendo com um isqueiro já pousado em cima da mesa. Vai-se, assim, o meu pensamento na baforada de um cigarro. Os olhos dele, qual setas verdes, continuam apontados na minha direcção, a boca mexe-se e as cordas vocais vibram, ele continua a falar mas não o ouço, ocasionalmente aceno com a cabeça para que pense o contrário.

Volto a ouvir a música, volto ao meu canto; porque tomo a minha mente como uma casa?, diferentes divisões no mesmo espaço, o saudável seria pensar nela como numa cidade, numa cidade à noite, as luzes ligadas, milhares de casas vistas do céu e o pulsar rítmico dos carros e dos transeuntes, uma gaivota que articula as asas harmoniosamente num intuito mecanizado de manter o voo; será que as gaivotas têm noção do dom que lhes foi concedido?, do quanto as invejamos por terem uma perspectiva aérea de todo o que nós vemos linearmente?; se me perguntassem agora o que mais desejaria no mundo responderia ser um anjo, ter asas e num movimento, que como para as gaivotas seria bastante vulgar, levantaria voo e aí, do ponto mais alto do céu, veria a amplidão da minha grandeza, ou pequenez não sei. Acho que é mesmo por isso que, por mais anos que passem, por mais que a evolução darwinista nos modifique, nunca teremos asas, se voássemos ate ao ponto mais alto da atmosfera, da nossa atmosfera, deparar-nos-íamos com a nossa pequenez, não teríamos mais forças para continuar a bater as asas e, assim tragicamente, cairíamos sem energia para um último voo. E aí deixo de ouvir a grafonola.
edit post

Comentários

2 comentário(s) sobre 'A grafonola'

  1. José Campos
    http://criticainformaactualiza.blogspot.com/2010/07/grafonola.html?showComment=1280344149953#c4383300390244881182'> 28 de julho de 2010 às 20:09

    Bem adorei a crónica Diogo, como já te disse uma vez e posso repetir vezes sem conta, tens imenso talento para a escrita.

    Continua!

    Abraço do teu amigo José Campos

     

  2. Sandra Esteves
    http://criticainformaactualiza.blogspot.com/2010/07/grafonola.html?showComment=1280356264095#c5924800013611548811'> 28 de julho de 2010 às 23:31

    Concordo com o comentário acima.

     

Enviar um comentário