Na sua adolescência, Wolfgang Amadeus Mozart encontrava-se constantemente em tournée pela Europa fora, mostrando os seus dotes de virtuoso do violino e do cravo (ou pianoforte, quando já o havia) e de compositor prodígio. Apesar da sua tenra idade, aos 14 anos, Mozart termina a sua primeira ópera seria – Mitridate, re di Ponto, feita para a corte de Milão e estreada em 1770, tendo sido extremamente bem recebida. Cerca de 200 anos depois, em 1986, Jean-Pierre Ponnelle junta-se a Nikolaus Harnoncourt e à sua orquestra, Concentus Musicus Wien, para gravar um filme baseado nesta obra-prima precoce de Mozart.



Começando pelo início: a história. O libretto de Vittorio Amadeo Cigna-Santi aborda a história do rei de Pontus, Mitridate, durante a época entre os seus conflictos com o Império Romano, em 63 a.C. Após uma pesada derrota numa batalha contra Roma, Mitridate é tido como morto e os seus filhos, Sifare e Farnace, vêem o caminho livre para poderem declarar o seu amor por Aspasia, a esposa do rei supostamente falecido. Portanto, uma típica história de amores e traições de uma ópera do século XVIII. Não querendo portanto revelar nada mais do enredo, passarei a analisar o conteúdo técnico desta gravação.

A Concentus Musicus, sob a batuta do conde Harnoncourt, apresenta-se enérgica e com uma boa noção de dinâmica, apesar de algumas vezes apostar em tempos ligeiramente lentos demais para o meu gosto pessoal (especialmente nas árias de Farnace). No entanto, não é nada de muito grave ou perturbante, sendo que a orquestra fornece na grande maioria das vezes um bom acompanhamento aos cantores. Um pequeno defeito a apontar é o som do cravo nos recitativos, que é ligeiramente estridente demais, quase como se fosse electrónico (apesar de sabermos que não o é).

Em relação aos solistas: Gösta Winbergh desempenha o papel de Mitridate e fá-lo com incrível mestria. Uma voz potente e realmente digna de um rei poderoso e pujante que se nos apresenta implacável e, por vezes, tirano. Como Sifare, filho mais velho de Mitridate e alvo do amor de Aspasia, Ann Murray consegue lidar com a coloratura e apresentar uma belíssima voz. E é exactamente esse o problema. O seu timbre demasiado feminino e soprano não consegue passar a ideia de que a personagem é realmente masculina. Pelo contrário, Anne Gjevang interpreta um Farnace sombrio e profundamente maléfico, completamente andrógino, que nos faz constantemente lembrar que se trata de um ser maquiavélico que pretende trair o seu pai e a sua pátria. Aspasia, noiva de Mitridate e alvo do amor dos seus dois filhos, é interpretada por Yvonne Kenny, que nos mostra uma verdadeira femme fatale que deixa a seus pés todos os homens do reino, sendo que também consegue representar muito bem a dicotomia entre os seus sentimentos de amor ou de dever patriótico. Por fim, Joan Rodgers mostra-nos uma Ismene jovial e interessante, perdida de amor por Farnace e traída por este homem cruel. Marzio e Arbate (Peter Straka e Massimiliano Roncato, respectivamente) vêem o seu papel reduzido a recitativos, com todas as suas árias cortadas. Além disso, o papel de Arbate como governador de Nimpheia (a cidade onde decorre a acção) é substituído. Ponnelle considerou que Arbate deveria ser um terceiro filho de Mitridate, uma criança, mostrando total e completo desrespeito pelo libretto de Cigna-Santi. É, aliás, este o mais marcante problema desta gravação. O desrespeito quer pelo libretto que pela partitura original de Mozart: diversas árias são cortadas, sendo para mim a mais marcante a “Venga pur” de Farnace, que é a verdadeira ária virtuosa da personagem.

Portanto, e apesar da enorme qualidade geral da orquestra e dos cantores, não recomendarei este filme pelo crasso erro cometido por Ponnelle e Harnoncourt: um enorme número de cortes, tanto em árias como em recitativos, que deixa a Mitridate de Mozart a saber a pouco.

Em relação ao cenário e ao guarda-roupa, tenho a dizer que tudo nos envolve num sentimento muito 80’s, com grandes e variados close-ups e com roupa extravagante, numa mistura de corte setecentista com metaleiro gótico. No entanto, divertido e agradável.

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Comentários

2 comentário(s) sobre 'Mitridate meets the 80's'

  1. HugoM
    http://criticainformaactualiza.blogspot.com/2010/07/mitridate-meets-80s.html?showComment=1280615063710#c3635533213033539989'> 31 de julho de 2010 às 23:24

    post fantástico

     

  2. Luís Peres
    http://criticainformaactualiza.blogspot.com/2010/07/mitridate-meets-80s.html?showComment=1280625456094#c6684862028362837488'> 1 de agosto de 2010 às 02:17

    Muito obrigado, HugoM. Tento fazer com que as pessoas leiam, gostem e fiquem desejosas por ver aquilo que eu comento e por continuar a ler o CIA.

     

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