Escrevo para vos falar da obra-prima vocal do mais conhecido compositor veneziano do século XVIII, Antonio Vivaldi. Refiro-me à sua única oratória que sobreviveu até aos nossos dias, Juditha Triumphans. Na verdade, este seu trabalho religioso poderia ser facilmente confundido com qualquer uma das suas composições operáticas, de tão cheio que está de árias desafiantes e teatrais destinadas e dedicadas às suas fiéis alunas da Pietà veneziana, que ansiavam por um cheirinho do mundo da ópera. O libretto de Iacopo Cassetti relata o triunfo da heroína judia Juditha (esqueça-se a redundância com o título da obra) sobre os exércitos hostis e hereges de Holofernes, que invadem a cidade de Bethulia. Agora, para não correr o risco de irritar os caríssimos leitores ao revelar o final da história épica do Livro Bíblico de Juditha, passo a analisar a (na sua maioria) brilhante interpretação gravada pela orquestra barroca I Barocchisti com (cabeças de cartaz) Roberta Invernizzi e Sara Mingardo (oh! A eterna contralto).


Começando pelos (extraordinários) acompanhantes às personagens, a orquestra. Os músicos liderados por Diego Fasolis revelam (como já em outras gravações pude constatar) um elevadíssimo grau de profissionalismo e brilhantismo, sendo que nunca nos deixam sonolentos com a sua interpretação, apostando sempre em dinâmicas agressivas e tempos vivos no furore e lacrimosos nas árias destinadas a tal fim (isto para os ouvintes mais susceptíveis a choradeira). Para vos apimentar o paladar auditivo: Vivaldi acrescentou às tradicionais cordas, oboés, chalumeaux, teorbas, bandolins, trompetes e tímpanos (o instrumento de percussão à la tambor, não o órgão físico).

Como heroína de toda a história, Juditha, a contralto Sara Mingardo (!) faz (como já nos habituou) um trabalho EXPLÊNDIDO, mostrando-se capaz tanto de nos transmitir através da sua (oh tão maravilhosa) voz a mais profunda angústia e tristeza pelo seu povo, raiva pelo destino de Bethulia com Holofernes e também de levar o general inimigo (e a nós) a apaixonar-se por ela. Gostaria de apontar árias em que Mingardo se destacasse e realmente fosse excelsa, mas é impossível. Tudo o que ela canta nesta gravação é perfeito e iguala-se a si mesma.

A representar o general Holofernes, temos Guillemete Laurens. Esta mezzo-soprano apresenta-se capaz de lidar com as árias destinadas à sua personagem de uma forma bastante positiva e agradável. Gostaria no entanto de salientar que, para o segundo papel mais importante desta obra, seria de esperar um maior nível de virtuosismo e uma voz mais agressiva. Na verdade, se não soubermos a história que se desenrola, poderíamos pensar que Mingardo é que encarna a personagem maléfica, visto ter uma voz mais ríspida que Laurens. No entanto, nada de muito grave. Desagrada-me apenas o tempo demasiado lento na ária “Sede, sede o cara”. Parece que Laurens pede a Mingardo para se deitar e não para se sentar junto a ela, de tão sonolento que é o tempo.

O braço direito de Holofernes, Vagaus, é interpretado pela soprano Roberta Invernizzi que, na minha opinião, é (não se ligue ao ligeiro fascismo intelectual) indisputavelmente a melhor Vagaus já gravada até hoje. Invernizzi demonstra-nos uma incrível facilidade em lidar com as árias mais virtuosas de todo o oratório (“Quamvis ferro” e “Armatae face”) de uma forma maravilhosamente ágil e poderosa, sendo que a soprano nos mostra um registo agudo belíssimo e um registo grave incrivelmente poderoso e quase mezzo. A par com Mingardo, Invernizzi é, indubitavelmente, a estrela da gravação.

Como personagens “menores” temos Abra (serva de Juditha) e Ozias (governador de Bethulia), interpretadas por Manuela Custer e Tiziana Pizzi, respectivamente. Na verdade, a acompanhar o facto de as suas personagens serem de alguma forma “inferiores”, está também a realidade (pouco agradável) de que são as cantoras menos talentosas do grupo. Manuela Custer apresenta alguma dificuldade em conseguir escolher entre o seu registo de cabeça e o de peito. Deambula pelos dois como se nada fosse a sua coloratura deixa realmente algo a desejar. Gostaria, no entanto, de salientar a minha parcialidade neste facto. Manuela Custer assassinou uma das minhas árias preferidas da “Orlando Furioso” de Vivaldi numa interpretação que fez dela e isso deixou-me bastante irritado com ela. Pizzi, nas suas árias em que executar trilos seria de uma extrema importância, especialmente na sua última ária, parece fisicamente incapaz de os fazer e isso arruína a experiência.

Por fim, o coro da rádio suíça, o Coro della RSTI, faz um bom trabalho, mas não óptimo. Soa algo distante na abertura do oratório e revela alguma dificuldade nas passagens mais virtuosas.

Portanto e para finalizar (finalmente, desculpem a nova redundância), é uma gravação que vale pelo acompanhamento orquestrar e pelas solistas de maior protagonismo. Além disso, não existe nenhuma falha realmente grave e é altamente recomendável.

Deixo-vos com um travozinho de Mingardo:


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