Já devem ter ouvido falar do Artigo 22 (Catch-22 no inglês original). No mundo de língua inglesa, é tão referido tanto em ficção de todo o tipo como na realidade quotidiana que, de título do livro de Joseph Heller, se tornou uma expressão idiomática com direito até a uma entrada no respeitável OED. No contexto original, é qualquer coisa como isto: um piloto pode ser dispensado de voar missões de combate por motivos de insanidade mental; para que isso aconteça, só tem de o pedir; contudo, esse pedido revela medo de perder a vida, um medo perfeitamente racional; donde a alegação de insanidade mental é prova de sanidade mental.


A acção do livro passa-se durante a Segunda Guerra Mundial, num esquadrão de bombardeiros americanos durante a tomada de Itália. Em teoria, os tripulantes dos bombardeiros deviam ser substituídos por novos combatentes ao fim de vinte e cinco missões, mas nunca ninguém é substituído porque o coronel Cathcart aumenta sempre o número de missões a atingir antes que alguém o atinja. (Se esta lógica parece demasiado surreal, aconselho que vejam Stop-Loss, baseado numa prática com o mesmo nome usada pelo exército americano em conflitos recentes como o Iraque e o Afeganistão.) Yossarian, o protagonista, sente-se directamente lesado por esta decisão, além de também acreditar que os inimigos o odeiam pessoalmente e o querem assassinar, o que o leva a alegar insanidade, introduzindo assim o art.º 22 na história.

O livro inteiro não tem propriamente uma história, é mais uma série de pequenas biografias das diversas personagens, com muitas sobreposições, onde o enfoque vai mudando e os mesmos fenómenos vão sendo apresentados sobre de pontos de vista ligeiramente diferentes, criando uma sensação delirante de perspectiva. É um pouco como o conceito por detrás da tecnologia 3D, mas feito a partir de ideias intrigantes em vez de cores bonitas. Curiosamente, é possível o leitor identificar-se com os dilemas de várias das personagens, o que não deixa de ser estranho, pelo menos para leitores como eu, que nunca tiveram qualquer experiência de guerra, felizmente. Pessoalmente, suspeito que Heller, mais do que descrever a natureza disfuncional da guerra, conseguiu diagnosticar essa mesma disfunção na sociedade como um todo. O meu receio é que não o tenha feito intencionalmente.

O filme de Mike Nichols não faz justiça ao livro. No entando, para ser justo com o realizador, o livro de Heller é uma daquelas obras que a maioria das pessoas concordaria não ser possível adaptar ao cinema. Uma das falhas do filme é até fazer algum sentido, mais do que o livro, que aparece ao leitor mais como uma sequência de argumentos e discussões relacionadas umas com as outras do que propriamente como uma narrativa estruturada. Contudo, não creio que seja possível entender o filme sem ter lido o livro. Por outro lado, ver o filme algum tempo depois de ler o livro faz-nos recordar o livro de novo, o que não é mau, e algumas sequências do filme são verdadeiramente geniais e conseguem capturar a ideia das passagens do livro nas quais se inspiram.

É difícil não comparar o filme de Nichols com MASH, de Robert Altman, realizado no mesmo ano. O filme de Altman é também uma mordaz sátira anti-guerra, mas as suas personagens conseguem manter a sua sanidade rejeitando a lógica da guerra e o absurdo das suas regras, um gesto possível em certa medida porque são todos não-combatentes. O tom irreverente de MASH parece funcionar ligeiramente melhor do que o ambiente psicótico do Artigo 22 porque as personagens, e os actores que as interpretam, parecem levar-se um pouco menos a sério. O filme de Altman também faz lembrar o livro de Heller na sua estrutura, pois também é desprovido de uma narrativa contínua, consistindo antes numa sequência de episódios mais ou menos relacionados uns com os outros, uma característica reforçada na série baseada no filme, M*A*S*H.

Na sua essência, todas estas obras são claramente manifestos anti-guerra. Mas não é despropositado vê-las como microcosmos onde a própria natureza humana é colocada em exibição. Também não é despropositado vê-las apenas pelo seu valor de entretenimento, e no mínimo dos mínimos conseguem fazer sorrir o anti-conformista dentro de nós.

edit post

Comentários

0 comentário(s) sobre 'Artigo 22'

Enviar um comentário